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As relações entre a carne e a brochura

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Sou daquelas que acreditam que tudo na vida é feito de momentos. Momentos alegres, tristes, marcantes, momentos simples, momentos complexos. O momento em que se levanta da cama, toma o café e segue os instantes que englobam a rotina e até o momento em que se cansa de tudo isso para começar novos momentos. Tem quem vive o momento quando ele acontece e tem quem espera o momento certo para viver.

Eu gosto de observar os momentos. Exatamente como se tivessem forma, como pessoas distantes que são analisadas ao longe de uma mesa de bar, misturando goles de cerveja a teorias inventadas. Um desses momentos são as conversas de cafeteria, que muitas vezes podem variar, mas quase sempre são relacionadas a livros. E em grande parte dos momentos são conversas silenciosas, reservadas ao corpo em contato com o papel. Tento observar preferências, formatos e manias. Combinações. Uma mulher sentada em uma mesa de dois lugares, os cabelos soltos cobrindo as expressões que faz enquanto lê “Comer, rezar e amar”. Um crucifixo no pescoço entrega que ela, provavelmente, se limitou ao título na escolha do livro que lia acompanhando o suco de laranja. Claro que é uma história muito bonita, mas talvez o momento não tenha feito as escolhas certas, afinal, não vejo razão para tomar suco em uma cafeteria.

Outro dia foi a vez do café expresso, tomado de forma desajeitada por um rapaz concentrado em um livro qualquer de capa dura. Não consegui assimilar o título com o dourado gasto das letras pequenas, mas foi fácil perceber que as páginas continham muitas manchas. Supus se tratar de alguma distopia, talvez estivesse lendo alguma versão antiga de 1984, pois, apesar da concentração, via sua surpresa enquanto não polpava agressividade para virar as páginas. Com certeza alguém diria que isso não é maneira de tratar um livro. Diria que ele deve ser cuidado com carinho, atenção, mãos limpas e um plástico protetor na estante. Nunca acreditei muito nisso, mesmo porque o trabalho que teria para tirar o plástico toda vez que quisesse ler alguma coisa iria me irritar tanto que eu desistiria na primeira tentativa.

Fiquei me imaginando chegando ao lado do rapaz, sem me explicar muito, como se fossemos velhos conhecidos. Ele demoraria um pouco para perceber a minha presença, viraria a página com voracidade e, depois, dobraria a ponta para marcar a página em que parou. Eu poderia, então, perceber todas as outras dobras feitas ao longo do livro para marcar passagens importantes e alguns trechos sublinhados a lápis. Ele, então, levantaria os olhos para mim e diria: “isso, sim, é um bom livro”. E depois passaria horas me explicando porque não confia nas páginas impecáveis de um livro lido uma única vez. Atrapalhado, derramaria mais um pouco de café exatamente entre um parágrafo e outro e, então, me diria que aquela é a melhor parte da história, ao mesmo tempo em que tentaria me explicar que livros não são pessoas, apenas amontoados de papel e brochura.

Eu agradeceria o papo e voltaria para casa pensando em como acreditava naquelas baboseiras. Provavelmente ele não tirou da própria cabeça, apenas reproduziu o que alguns escritores também devem pensar a respeito desse universo de pensamentos aprisionado nas palavras. E não tenho problemas com isso, afinal, ele com certeza deve ter se identificado tanto com alguma citação que acabou incorporando como parte de si próprio. E muitos livros acabam fazendo isso. Por isso, acho que livros são, sim, como pessoas. Claro que exigem certo cuidado, mas todo exagero é prejudicial. Fico pensando se aquele livro impecável da biblioteca tinha sido lido tantas vezes e com tanta intensidade quanto um outro que quase desisti de levar por conta do excesso de tinta colocado nas marcações à caneta, algumas que se perdiam junto com as páginas amareladas e os pedaços que faltavam. Uma criança, quando é superprotegida, às vezes se esquece do mundo que a espera lá fora. Acho que os livros também são assim. Cuidado demais acaba tirando todo o interesse das palavras.

Algum momento depois, na entrada da livraria, passei algum tempo encarando uma capa chamativa com desenhos impecáveis ilustrando o livro. Acima dele, diversos letreiros que diziam: “o mais vendido dos últimos anos”, “best-seller internacional”, “você não pode perder”. A propaganda é a alma do negócio e a perdição das carteiras desprevenidas. Voltei para casa com uma capa bonita e um livro vazio, me lembrando dos momentos em que acreditei que a aparência era tudo na vida. Um bom penteado, um rosto agradável e uma beleza estonteante são capazes de comprar qualquer um, até o momento em que não se consegue segurar mais do que dois minutos de conversa. É fácil se livrar dos livros assim como é fácil se livrar das pessoas. Uma desculpa qualquer e você vende aquela capa maravilhosa para um sebo por 1/4 do preço que pagou, enquanto eles se aproveitam da beleza e revendem por 3/4, a mesma fração de páginas que você consegue ler depois de descobrir que o livro é horrível, isso com a paciência divina necessária para passar da metade.

Livros são como pessoas. Seja com cuidado ou deixados ao mundo, eles podem te oferecer abrigo, conforto, imaginação, assuntos para conversas, fuga e ilusões. Mesmo que tudo pareça maravilhoso durante o momento em que estamos juntos, sempre existe a hora de fechar as páginas, guardar na estante e voltar-se para a realidade, quando lembramos que nem tudo é o que parece ser. Nem a carne, nem a brochura.


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